Hospitais e conselhos médicos estão apertando o cerco para evitar que profissionais compartilhem dados de pacientes, como ocorreu no caso da ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva, que teve a tomografia e informações do seu diagnóstico vazadas em grupos de WhatsApp.
O episódio resultou nas demissões de uma médica plantonista do Hospital Sírio-Libanês e de um neurologista da Unimed São Roque, além de duas sindicâncias no Cremesp (conselho médico paulista) que investiga a quebra de sigilo médico e a afronta à dignidade da paciente.
No Sírio-Libanês, a diretoria reuniu na semana passada todos os médicos plantonistas para relembrar as regras de sigilo e privacidade do paciente previstas em seus contratos de trabalho.
“Alguns acharam que foi uma medida muito dura (a demissão), mas a gente mostrou o contrato. Existe um código de conduta a ser cumprido e consequências para quem descumprir”, diz o superintendente Paulo Chap Chap.
Também foi emitido um comunicado ao corpo clínico lembrando que não é permitido o uso de celulares em áreas onde há pacientes. “O profissional tem o direito de receber mensagens, mas, para respondê-las, há áreas reservadas, como a copa e a área de descanso. Assim, você coíbe a produção de imagens”, afirma Chap Chap.
O acesso ao prontuário eletrônico do paciente também tem sido dificultado. O Hospital Albert Einstein acaba de implantar um sistema no qual, para ver o prontuário, é necessário ter uma senha e dizer seu papel no cuidado do doente. Se não o fizer, o acesso é negado.
O sistema rastreia todos os profissionais que acessaram o prontuário. “Entre hackers, há informações médicas que têm mais valor do que as de cartões de crédito. A segurança de dados é fundamental”, diz o cirurgião Sidney Klajner, presidente do Einstein.
No Sírio-Libanês, há um sistema que rastreia quem viu o prontuário do doente, mas o acesso é aberto ao corpo clínico. “Se eu restrinjo demais, prejudico o paciente. Numa emergência, o médico que está disponível precisa ver o que está acontecendo e fazer um atendimento rápido”, afirma Chap Chap.
No Hospital Oswaldo Cruz, as regras são parecidas. Os médicos também não têm permissão para acessar dados do paciente de fora do hospital e tampouco compartilhar informações ou exames por WhatsApp, mesmo que seja para discutir um caso.
“Existe risco de quebra de sigilo, de os dados se tornarem públicos. Há aplicativos médicos mais seguros para esse fim”, diz Mauro Borges, superintendente do hospital.
O “episódio Marisa” também deve gerar mudanças no Código de Ética Médica, que passa por revisão. O Conselho Federal de Medicina recebe sugestões até 31 de março.
Segundo Mauro Aranha, presidente do Cremesp, deve haver endurecimento nas regras sobre compartilhamento em redes sociais. Algumas ideias são polêmicas, como proibir médicos de opinar sobre a saúde de pacientes (mesmo que não sejam os seus).
Para o médico Gustavo Guzzo, professor de clínica médica da USP, o Brasil tem que avançar na segurança dos dados. Na Holanda, mesmo entre os médicos da equipe, essas informações só circulam com o aval do doente.
A punição pode ser rigorosa. Na Espanha, uma enfermeira foi condenada a dois de prisão por ter olhado o prontuário do pai de seus netos por achar que ele era usuário de drogas.
Além do vazamento, outro assunto discutido em conselhos e associações médicas são as mensagens de ódio que envolveram o caso de Marisa.
Um médico chegou a sugerir a interrupção dos procedimentos para acelerar a morte. Ele foi demitido e responde sindicância no Cremesp.
Outras mensagens de ódio contra Marisa e Lula foram propagadas em um grupo fechado do Facebook, chamado “Dignidade Médica”, com 96 mil membros entre médicos e alunos de medicina.
“É lamentável, estamos vivendo momentos de intolerância máxima, de preconceitos. E muitos médicos estão deixando que isso se sobreponha à ética”, diz o infectologista Marcos Bolous, da Secretaria de Estado da Saúde.
“Todos devem respeitar a vida, mas há limitação em punir porque não se trata de um ato médico”, diz Florisval Meinão, presidente da Associação Paulista de Medicina.
“Eles não podem reproduzir a violência que existe na sociedade. A medicina tem tradição de respeito à dignidade humana”, diz Aranha.
Na opinião de Meinão, as escolas médicas devem reforçar o ensino de ética. “Muitas nem têm a disciplina.”
O Cremesp criou um Código de Ética do Estudante de Medicina com regras que o aluno deve cumprir, como o “respeito absoluto à vida humana” e vetos como “ter atitude preconceituosa em relação a qualquer pessoa”.
Reinaldo Ayer, professor de bioética da USP e conselheiro do Cremesp, diz que o episódio mostra que é preciso selecionar melhor quem ingressa e quem sai das escola médicas. “As boas escolas têm formado engenheiros de medicina. São profissionais bem preparados tecnicamente, mas despreparados nas abordagens da ética e das relações humanas.”