Nas décadas de 1970 e 1980, era comum que doadores de sangue fossem “remunerados” no Brasil. No contexto de crises econômicas e desemprego da época, ainda é viva para muitos profissionais da saúde a memória das pessoas que doavam sangue até mesmo em troca de um prato de comida ou de um “pão com café e leite”. Esse é o cenário para o qual hematologistas e outros especialistas temem que o país volte caso seja aprovada a PEC 10/2022, que tramita na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado.

A CCJ agendou a análise do projeto para esta quarta-feira (29/3), mas parlamentares contrários à proposta pressionam para retirar o tema de pauta. A relatora da PEC na comissão, Daniella Ribeiro (PSD-PB), informou ao JOTA, por meio de sua assessoria, que pretende realizar uma audiência pública sobre o assunto e que está ouvindo todas as partes interessadas antes de manifestar sua opinião.

De autoria de 27 parlamentares de diversos partidos, a PEC altera o artigo 199 da Constituição, que dispõe sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma (um dos componentes do sangue), permitindo que isso seja feito pela iniciativa privada. A Carta Magna proíbe expressamente “todo tipo de comercialização” de órgãos, tecidos e substâncias humanas. Atualmente, toda a coleta e processamento fica a cargo da Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia), estatal criada em 2004, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Na prática, a PEC abre uma brecha para a comercialização de sangue, o que compromete a autossuficiência da rede de hemocentros do país e a segurança sanitária, segundo especialistas em Hematologia, demais profissionais da Saúde e parlamentares que se opõem à proposta.

“Essa PEC é um enorme retrocesso em políticas públicas de saúde, abre a possibilidade de volta de compra e venda de sangue e seus derivados [como plasma e plaquetas]. Quando isso acontecia, não havia um controle rígido de segurança. Hoje, o sistema público de saúde garante a qualidade do processo, seguindo as normas da Anvisa”, argumenta o senador Humberto Costa (PT-PE).

Costa, que foi ministro da Saúde de 2003 a 2005 e é presidente da Comissão de Assuntos Sociais (CAS), é um dos mais ferrenhos críticos à PEC 10/2022 e tem se articulado para tentar suspender a tramitação da proposta. Na semana passada, a reunião da Comissão que discutiria o assunto chegou a ser adiada.

Costa reconhece que o Brasil ainda não tem capacidade de processar todo o plasma que é doado — isso deve mudar em outubro, quando a Hemobrás estará totalmente concluída e ampliará sua capacidade de processamento —, mas diz que “certamente há interesses privados” em jogo na tramitação da PEC.

Até o momento, o plasma que a Hemobrás não é capaz de processar é enviado para o exterior, de onde é mandado de volta em forma de hemoderivados. Esse é um dos argumentos usados pelo senador Nelsinho Trad (PSD/MS), principal autor da proposta, para impulsionar sua tramitação e aprovação. “Milhares de bolsas de plasma são descartadas a cada ano, algo que ficou ainda mais evidente nos anos críticos da pandemia de Covid-19”, diz.

Trad acrescenta que a PEC visa “atualizar uma legislação que já remonta a 30 anos, diante da evolução das redes de diagnóstico e tratamento de doenças hematológicas.” Ele considera que a abertura da coleta e processamento para a iniciativa privada garantiria a autossuficiência do Brasil em plasma.

Em nota, a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) afirmou ao JOTA que, “considerando que existe grande desperdício de plasma, apoia a autorização da participação da iniciativa privada na comercialização e fracionamento industrial do plasma humano excedente do Brasil”. No entanto, a entidade se diz contrária à remuneração de doadores de plasma para fins industriais.

João Paulo Baccara, hematologista há mais de cinco décadas e primeiro presidente da Hemobrás (de 2005 a 2009), discorda dos argumentos de Trad. “A PEC 10/2022 ameaça todos os avanços alcançados desde que se doava sangue em troca de um lanche e coloca em risco toda a reforma sanitária dos últimos 30 anos.”

Além das questões éticas — um dos pilares do sistema nacional de sangue é a garantia de doações voluntárias e não remuneradas  —, Baccara ressalta que a concorrência entre um serviço privado que remunera o doador e o serviço público prejudicaria os estoques dos hemocentros. “Quem doa plasma por dinheiro não vai doar sangue. E os hemocentros já têm grande dificuldade em manter seu abastecimento. É preciso lembrar que cada bolsa de sangue tem cerca de 55% de plasma e 45% de hemácias, e as pessoas não morrem imediatamente por falta de plasma, mas por falta de sangue.”

Tanto Baccara quanto Humberto Costa avaliam que o melhor a ser feito é aumentar os investimentos em ciência e saúde pública, de modo geral, e fortalecer a rede nacional de hemocentros. “É preciso reforçar a Hemobrás para que sejamos autossuficientes no setor e possamos abastecer o SUS, em benefício de todo o povo brasileiro, longe de transformar a hemorrede em um balcão de mercado”, disse o senador Costa na tribuna do Senado na última terça-feira (21/3).