A Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, faz 25 anos e tem-se o que comemorar, pois dispõe que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) aplica-se complementarmente aos Planos de Saúde.

Inicialmente, é importante reforçar que há relação jurídica de consumo nos planos de saúde, pois o consumidor é o titular de planos de saúde, seus dependentes, os agregados, os beneficiários, os usuários, ou seja, todos os que utilizam ou adquirem planos de saúde como destinatários finais ou equiparados.

E o fornecedor é a operadora de planos de assistência à saúde, aquela que oferece serviços de assistência à saúde, através dos planos de saúde no mercado de consumo, isto é, as pessoas jurídicas constituídas sob a modalidade medicina de grupo, seguradora especializada em saúde, cooperativa, filantrópica e administradora de benefício, obrigatoriamente, registradas na Agência Nacional de Saúde Suplementar.  A ANS é incumbida de regulamentar, fiscalizar e monitorar o mercado de saúde suplementar, sempre com foco na qualidade da assistência à saúde.

A relação, entre os consumidores e as empresas que oferecem serviços de assistência à saúde, está amparada pelo CDC. Portanto, os consumidores de planos de saúde têm o direito de ver, reconhecidos, todos os direitos e princípios assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor.

Neste mercado, verificam-se duas espécies de contratos de planos de saúde: os planos antigos e os planos novos. Consideram-se planos antigos os que não estão submetidos à Lei nº 9.656/1998, ou seja, os quais foram firmados anteriormente à sua vigência mas, no entanto, devem respeitar o CDC. Já os planos novos são os firmados após a vigência da Lei nº 9.656/1998.

Há, ainda, uma subespécie dos contratos novos, os planos adaptados, que são àqueles firmados antes da vigência da Lei nº 9.656/1998, mas posteriormente, por meio de aditivo contratual, para ampliar o conteúdo do contrato original; ou através da migração, que é a celebração de um novo contrato de plano de saúde dentro da mesma operadora; ambas as formas para contemplar as regras vigentes. Portanto, tanto os planos novos como os adaptados têm de respeitar a lei específica e sua regulamentação que por sua vez, obviamente, também, devem respeitar os ditames do Código de Defesa do Consumidor.

Cabe fazer um breve relato de como que o legislador pátrio tratou sobre a aplicação do CDC aos planos de saúde

A Lei 9.656/1998, em seu artigo 35 G, dispôs que se aplicam subsidiariamente aos contratos de planos privados de assistência à saúde as disposições do Código de Defesa do Consumidor:

“Artigo 35-G. Aplicam-se subsidiariamente aos contratos entre usuários e operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o §1º do artigo 1º desta Lei as disposições da Lei nº 8.078, de 1990.”

Cabe ressaltar que, o Código de Defesa do Consumidor é lei geral principiológica e se aplica a toda relação de consumo, a Lei 9.656/1998, por sua vez, é especial que regula os planos privados de assistência à saúde, isto é, os planos de saúde, incluindo nesta terminologia os seguros-saúde.

A Lei dos Planos de Saúde expressamente menciona a aplicabilidade do CDC, entretanto, o legislador não foi apropriado ao determinar que a aplicação do CDC aos planos de saúde é subsidiária. A terminologia adequada à aplicação do CDC deveria ser complementar.

Nesse diapasão, cabe recorrer à Cláudia Lima Marques que, ao comentar a questão, assinala:

“Este artigo da lei especial não está dogmaticamente correto, pois determina que norma de hierarquia constitucional, que é o CDC (artigo 48 ADCT/CF88), tenha apenas aplicação subsidiária a normas de hierarquia infraconstitucional, que é a Lei 9.656/98, o que dificulta a interpretação da lei e prejudica os interesses dos consumidores que queria proteger. Sua ratio deveria ser a de aplicação cumulativa de ambas as leis, no que couber, uma vez que a Lei 9.656/98 trata com mais detalhes os contratos de planos privados de assistência à saúde do que o CDC, que é norma principiológica e anterior à lei especial. Para a maioria da doutrina, porém, a Lei 9.656/98 tem prevalência como lei especial e mais nova, devendo o CDC servir como lei geral principiológica a guiar a interpretação da lei especial na defesa dos interesses do consumidor, em especial na interpretação de todas as cláusulas na maneira mais favorável ao consumidor (artigo 47 do CDC). Particularmente defendo, em visão minoritária, a superioridade hierárquica do CDC.”

Nesse sentido, entende-se, ser perfeitamente admissível a aplicação cumulativa e complementar da Lei 9.656/98 e do Código de Defesa do Consumidor aos planos de saúde. Da lei geral extraem-se os comandos principiológicos aplicáveis à proteção do consumidor, ao passo que à legislação específica caberá reger, de forma minudenciada, os planos de saúde.

Percebe-se, claramente, que a intenção do legislador foi a de reforçar a incidência do Código de Defesa do Consumidor ao regular os planos de saúde. Mas, utilizou terminologia equivocada, em seu artigo 35-G ao afirmar que a aplicação do CDC é subsidiária. No entanto, mesmo se não houvesse qualquer menção ao CDC na Lei 9.656/98, ele estaria subjacente, por ter raiz constitucional e se tratar de lei principiológica.

Deste modo, qualquer lei especial que vier regular um segmento específico que envolva, em um pólo, o consumidor e, em outro, o fornecedor, transacionando produtos e serviços, terá de obedecer à Lei Consumerista, ainda que não haja remissão expressa. Como ensina Rizzatto Nunes: “na eventual dúvida sobre saber qual diploma legal incide na relação jurídica, no fato ou na prática civil ou comercial, deve o intérprete, preliminarmente, identificar a própria relação: se for jurídica de consumo, incide na mesma a Lei 8.078/90”.

Compartilhando do entendimento de Marcelo Sodré cabe destacar que “as leis de defesa do consumidor, na exata medida em que fixarem princípios a serem perseguidos — e neste caso se tornarem leis principiológicas — terão superioridade em relação às demais leis especiais”.

Como este tema foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro de forma equivocada, acabou gerando muita controvérsia, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi instado a se manifestar, por meio da 2ª Seção, ao aprovar, inicialmente a Súmula 469, com a seguinte redação: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumido aos contratos de planos de saúde”.  Anos depois, tal Súmula foi cancelada, pela própria 2ª Seção, ao aprovar a Súmula 608 [7], para introduzir uma ressalva ao entendimento anterior, há tempos pacificado, de que: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, aos contratos de planos de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”.

Cabe salientar que o STJ, em suas considerações, não fez qualquer ressalva em relação à época de contratação dos planos de saúde, sejam eles firmados a qualquer tempo, antes ou depois da lei específica que os regula. Tal Lei vige no nosso país a partir do dia 1º de janeiro de 1999. Nesse sentido, de acordo com a jurisprudência, todos os contratos de planos de saúde, sejam antigos ou novos devem observar o Código de Defesa do Consumidor, com exceção apenas para as operadoras de planos de saúde na modalidade de autogestão. As autogestões não visam lucro e não comercializam planos no mercado de consumo, e sim oferecem este serviço diretamente por meio de sistemas fechados, através de departamento e para grupo de associados, sindicalizados ou funcionários. Neste caso, portanto se entendeu que não se configura relação jurídica de consumo.

Entretanto, recentemente, a Lei dos Planos de Saúde sofreu alterações com a aprovação da Lei 14.454, de 21 de setembro de 2022, e um dos temas, que volta à baila, é justamente sobre a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. O artigo 1º da Lei 9.656/1998 passa a dispor:

“Artigo 1º Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:”.

Neste diapasão, o legislador veio pacificar positivamente, o que sempre defendemos, que o Código se aplica complementarmente a todos os contratos de planos de saúde, sejam antigos ou novos, sem nenhuma ressalva.

Por conseguinte, os consumidores de planos de saúde têm, em primeiro lugar, o direito a ver reconhecidos todos os seus direitos e princípios assegurados pelo CDC tanto na legislação especial, quanto na esfera da regulamentação administrativa.

Como se denota, este dispositivo revogou tacitamente o artigo 35-G que dispunha equivocadamente sobre a aplicação subsidiária do CDC. E, também, a Súmula 608 do STJ passa a não corresponder com o direito pátrio vigente, pois a aplicação do CDC é para quaisquer contratos de planos de saúde oferecidos pelas operadoras de planos de assistência à saúde, sem nenhuma ressalva.

Portanto, a ANS deve observar os ditames do CDC ao regular e fiscalizar o setor de saúde suplementar, especialmente seus princípios que se destacam, em primeiro plano, a vulnerabilidade do consumidor, o direito à informação e transparência, a boa-fé objetiva e o equilíbrio dos contratos, além de interagir com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, na busca de um mercado sustentável, eficiente e socialmente justo e que o consumidor seja beneficiário de suas ações.

Claro que além dessa vitória, avanços são inegáveis nesses vinte e cinco anos, mas ainda a regulação do setor de saúde suplementar necessita-se de aperfeiçoamentos, especialmente em pontos que não se coadunam com o CDC, tais como os planos de saúde coletivos, que têm reajustes não autorizados pela ANS, podem suspender ou rescindir unilateralmente seus contratos, e não são obrigados a fornecerem aos consumidores as condições gerais dos contratos. Esse aperfeiçoamento deve se dar a partir de um debate amplo com todos os atores envolvidos na saúde suplementar e, também, não deve haver retrocessos referentes às conquistas alcançadas até o momento.

O diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e a Lei dos Planos de Saúde é condição sine qua non.