A cena tem sido frequente nos últimos anos nos tribunais brasileiros: paciente muito enfermo(a), com doença grave e rara, entra com ação pedindo gratuidade no tratamento não coberto pelo plano de saúde ou pelo SUS. Qual magistrado(a), com coração e sentimentos humanos, não tem o impulso instintivo de usar o poder de sua caneta imediatamente para salvar o ser humano à sua frente? E depois, ir dormir tranquilo(a) com a certeza de que salvou uma vida. Mas é isso mesmo? Infelizmente não.
Juízes precisam se conformar de que a sua profissão exige escolhas de Sofia todos os dias, e precisam se dar conta de que, enquanto “salva” o indivíduo que está à sua frente, está na verdade assinando o atestado de óbito de vários outros fora do tribunal – isso é tão certo quanto o ar que respira, apenas ele(a), o juiz, não vê. É trocar um por muitos, ou muitos por um – esta é a real decisão a ser feita, reconheça ou não. A vida não tem somente decisões fáceis. Não há salvadores nestes casos.
A lógica é bastante simples, apesar de fria, cruel e incômoda: os recursos são limitados e, por isso, são compartilhados. Não existe sobra: se vai para um, não vai para o outro; se um não paga a conta, os demais vão ter que pagar. A pergunta é: quem deve pagar a conta de quem? Numa lógica natural e justa cada um deveria pagar a sua conta. Mas isso não ocorre quando alguém recebe “de graça”.
Quando um juiz dá um tratamento “de graça” a um indivíduo, o que ele está fazendo é, da maneira mais explícita possível, passar a conta para os outros. E a conta precisa ser paga, ninguém sai do restaurante sem pagar, apenas, o juiz não vê a cara destes que terão que pagar a conta, e como eles pagam a conta (às vezes, com a perda da chance de ter o seu próprio tratamento).
No caso dos planos privados, à medida que as gestoras precisam ajustar seus preços para cobrir mais e mais tratamentos inicialmente não previstos, mais e mais pessoas deixam os planos de saúde privados, juntando-se aos milhões nas filas do SUS (que já tem graves dificuldades de operar adequadamente). As estatísticas do número de pessoas cobertas por planos privados são amplamente conhecidas por todos e não nos deixam mentir.
Além de não serem justas porque “quem recebe não está pagando”, o outro lado da injustiça está quando comparamos mais de perto as pessoas que deixam de pagar (porque conseguem julgados favoráveis na Justiça) com aquelas que acabam pagando a conta.
Trabalhos acadêmicos com dados empíricos mostram que os indivíduos geralmente favorecidos por essas decisões judiciais são os que relativamente menos precisariam de uma proteção legal, dadas as suas condições sociais e financeiras.
Se o Judiciário teve, ou tem, em algum momento, pretensões de realizar distribuição de renda (em um país onde a concentração é de fato injustamente alta como é o nosso) por meio do favorecimento de pacientes nas decisões judiciais, essa é, na verdade, a pior maneira de se realizá-la.
Wang (2013)[1] compila alguns estudos recentes[2] que indicam que os beneficiários das ações de judicialização da saúde são majoritariamente cidadãos residentes em regiões de alta renda. No caso de ações contra o sistema de saúde público, favorecer esses litigantes faz com que o serviço de saúde se torne cada vez menos igualitário.
Já no caso de ações contra planos privados de saúde, os litigantes claramente são pessoas com renda muito acima da média nacional, que têm pressionado os tribunais para que lhes sejam concedidos tratamentos não cobertos pelos planos ou de valores vultosos. Dados empíricos de Ferraz (2010)[3] e Ferraz e Vieira (2009)[4], entre outros trabalhos e autores, mostram isso de maneira clara.
Quando pacientes de maior poder aquisitivo litigam e ganham proteção judicial para tratamentos de saúde, os outros indivíduos estarão pagando subsidiariamente pelos seus tratamentos particulares. No sistema de saúde público, os que pagam são todos os cidadãos que contribuem para o sistema de previdência de assistência social. Nos sistemas privados, quem paga subsidiariamente pelo tratamento beneficiado dos litigantes são todos os outros clientes do plano de saúde e também todos os outros cidadãos que gostariam, mas que não têm condições de pagar por um plano privado de saúde. É o chamado efeito crowding out em economia aplicado aos planos de saúde.
Por conta disso, a condição de “sonho” dos planos de saúde para boa parte dos cidadãos brasileiros se perpetua – aliás, não menos do que o 3º maior sonho, de acordo com pesquisa realizada pelo Ibope e IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar) em 2017[5]. Talvez mais importante para os magistrados (e demais reguladores) seja entender as causas e raízes do porquê deste sonho continuar inalcançável para boa parcela da população brasileira. Diversos fatores poderiam explicar, mas o que torna os serviços de saúde particularmente onerosos é a imperfeição do mercado de planos de saúde, dominado por assimetrias de informação entre empresas e clientes, refletidos nos conhecidos fenômenos de risco moral e seleção adversa.
Até aqui, não haveria nada muito surpreendente e diferente do caso em outros países. No entanto, o que diferencia a situação brasileira dos demais é que, além de todas as inseguranças e incertezas tradicionais do setor de planos de saúde, ainda há as incertezas geradas pelas possíveis perdas com a judicialização para a cobertura de tratamentos não previstos, os juízes que acreditam estar salvando vidas com essas decisões.
Dado que normalmente os valores envolvidos nesses casos são extremamente altos, as consequências das concessões judiciais favoráveis aos pacientes têm impactos significativos nas empresas de planos de saúde; isso soma-se aos efeitos da generalizada crise econômica dos anos recentes no Brasil (algumas milhares de empresas que faliram nos últimos anos, até com consequências dramáticas para seus clientes).
As formas que as empresas do setor possuem para recuperar a saúde financeira são as mesmas existentes para qualquer empresa, de qualquer setor: (i) conquistar mais clientes, tarefa quase impossível dada a conjuntura macroeconômica nacional; ou (ii) repassar os custos – inclusive advindos dos processos judiciais, aos preços (mesmo que dentro dos limites autorizados pela lei). No caso de decisões contra o sistema da saúde pública somente torna ainda mais dramática a incapacidade do SUS de atender aos cidadãos necessitados, por falta de verbas.
Ao beneficiar de maneira sistemática os litigantes que pedem coberturas de procedimentos não previstos, em verdade, o Judiciário aumenta a incerteza do setor ao torná-lo não atraente e mais caro aos demais beneficiários, que pagam a conta dos outros que recebem tratamentos gratuitos por determinação judicial. Isso bloqueia a entrada de mais beneficiários e ainda inviabiliza todo o princípio da mutualidade, que é a base do negócio do seguro desde que esta indústria foi criada na humanidade.
Se o objetivo é o de promover um mercado que funcione adequadamente e atenda aos interesses dos cidadãos, é vital tornar o setor de planos de saúde atraente para os investimentos privados para se aumentar a concorrência. Enquanto houver insegurança e superexposição judicial (com constantes decisões desfavoráveis, sobretudo aquelas de repercussão geral, afetando toda a cadeia nacional) não será possível reverter a situação de baixa cobertura da população brasileira e a migração de parcela crescente desta para o SUS.
Decisões fáceis não existem – sobretudo na carreira judicial. Não é possível achar que se fez uma boa ação simplesmente repassando a conta de uns para outros. Se a escolha de Sofia tem que ser feita, que seja feita com mais entendimento das consequências que serão geradas: alguém vai pagar a conta, a questão é decidir quem.
Ouvi tempos atrás o caso anedótico, mas real, de um juiz que concedeu uma liminar obrigando a Secretaria Municipal de uma determinada localidade a dar um tratamento caro a um paciente. Como normalmente acontece, o juiz foi dormir com a sensação de ter salvo uma vida. Meses seguinte, coincidiu dele ir visitar o hospital local. O diretor do hospital mostrou para ele uma lista de óbitos recentes e disse: “Não conseguimos recursos para tratar essas pessoas, porque tivemos que cumprir aquela sua ordem para atender ao paciente que entrou com a ação.” Depois disso, o juiz largou a magistratura.
Não dá para dormir tranquilo.
* JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em http://www.jurishealth.com.br
[1] WANG, Daniel WL. Courts and health care rationing: the case of the Brazilian Federal Supreme Court. Health Economics, Policy and Law, v. 8, n. 1, p. 75-93, 2013.
[2] WANG (2013) cita: Vieira and Zucchi (2007), Afonso da Silva and Terrazas (2011), Chieffi and Barata (2009), Wang e Ferraz (2010).
[3] FERRAZ, Octavio Luiz Motta. Harming the poor through social rights litigation: lessons from Brazil. Texas Law Review, v. 89, p. 1643, 2010.
[4] FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. DADOS-Revista de Ciências Sociais, v. 52, n. 1, p. 223-251, 2009.
[5] Disponível em https://paraibaonline.com.br/plano-de-saude-um-sonho-desejado-pelo-brasileiro/. Pesquisa do IESS/IBOPE nos anos anteriores chegou a resultados semelhantes, na verdade, este resultado parece aguçar-se com o passar dos anos, segundo a própria pesquisa.