Uma das questões que suscitam grandes dúvidas e debates, tanto no meio acadêmico, quanto na jurisprudência, é a possibilidade de se estender nas relações privadas, ainda que reguladas pela Autoridade Estatal, a eficácia da proteção dos direitos fundamentais, constitucionalmente assegurados, mormente a observância do devido processo legal.
Assim, a presente coluna se propõe a analisara aplicação do devido processo legal nas relações contratuais do mercado privado de assistência suplementar à saúde.
Inicialmente, há que se ter em mente que, em que pese a saúde ser direito de todos e dever do Estado (artigo 196 da CF), cabendo ao Poder Público o controle sobre as ações de saúde (artigo 197, ab initio, da CF), sua execução pode ser feita por pessoa jurídica de direito privado (artigo 197, in fine, da CF), sendo a assistência à saúde livre a iniciativa privada (artigo 1999 da CF).
Logo, faz-se necessário a salutar separação do intrincado sistema de atenção à saúde brasileiro, consagrado na Constituição da República:
a) Saúde Pública: direito fundamental social, constitucionalmente garantido, com base legal no artigo 6º, caput, combinado com artigo 196 e artigo 198, CF, regulamentado pelo artigo 2º da Lei 8.080/90, cujo atendimento será prestado em regime de direito público (Lei 8.080/90), em caráter universal e integral;
b) Saúde Complementar: serviço público prestado por particular delegatário (contrato ou convênio), nas localidades onde a disponibilidade do SUS revelar-se insuficiente para atender a população local, com base legal no artigo 199, §1º, CF, regulamentado pelo artigo 24 e parágrafo único, da Lei 8.080/90, cujo atendimento será prestado em regime de direito público (Lei 8.080/90), em caráter universal e integral;
c) Saúde Suplementar: atividade econômica em sentido estrito, com base legal no artigo 170, combinado com artigo 199, caput, e §2º, CF; Lei 9.656/98 (Lei de Planos de Saúde), na Lei 9.961/00 (Lei de criação da ANS), na Lei 10.185/01 e no Decreto Lei 70/66 (Lei do seguro-saúde), cujo atendimento será prestado em regime de direito privado, nos limites estabelecidos nas cláusulas contratuais, observados as garantias legais, tão-somente, a quem participar financeiramente do mercado.
Visto isso, passa-se a tratar do devido processo legal, por didático e pertinente.
O devido processo legal é instituto jurídico que se traduz no direito fundamental que tutela, disciplina, limita e procedimentaliza a forma pela qual o Poder Público irá interferir na esfera de domínio privado do indivíduo. Segundo Carlos Roberto Siqueira Castro trata-se do “direito público subjetivo à tutela jurisdicional isonômica e imparcial” [1].
Tal instituto pode ser apreciado em suas duas vertentes processuais, a saber:
a) devido processo legal penal: é o equilíbrio entre o ius puniendi e o ius libertatis, no qual nenhum indivíduo será privado de sua liberdade sem a devida observância do trâmite adequado;
b) devido processo legal civil: é o instrumento de tutela isonômica do direito de ação e da garantia de defesa em Juízo, no qual nenhum indivíduo será privado de seus bens, tampouco compelido a fazer ou deixar de fazer algo, senão por ordem da autoridade estatal competente, mediante a observância do trâmite adequado.
Suas origens históricas montam aos primórdios do direito constitucional anglo-saxão. Em 1215, o artigo 39 da Constituição do Rei João sem terra (príncipe regente de Ricardo Coração de Leão) determinava que nenhum homem livre seria privado de suas propriedades sem a observância da law of the land (lei da terra). No ano de 1352, a referida constituição foi emendada por Eduardo III que deu nova redação ao artigo 39, introduzindo a expressão due process of law.
Por sua vez, em 787, a Convenção da Filadélfia consagrou o modelo federativo e a soberania da União dos 13 Estados Independentes, antigas colônias britânicas. O traço característico do Bill of Rights foi de estabelecer limites à função Legislativa por parte do Executivo (veto presidencial) e pelo Judiciário (judicial review). Assim, consagrou-se a forma presidencialista de governo, como resposta ao modelo parlamentarista inglês. Outrossim, o texto original do Bill of Rights era omisso no que tange aos direitos e garantias fundamentais, sendo incorporados a posteriori.
A 1ª emenda incorporou ao texto constitucional o direito de petição e a liberdade de expressão. A 2ª emenda, o direito ao porte de arma. A 5ª emenda introduziu ao Direito Constitucional norte-americano os seguintes direitos fundamentais: a) due process of law: ninguém será privado de seus bens ou liberdade sem o devido processo legal (garantia da justa indenização na desapropriação para uso público); b) trial by jury (jury trial): direito ao julgamento por júri independente e imparcial; c) no self incrimination: vedação à auto incriminação forçada (produção de provas contra si mesmo); d) doble jeopardy: proibição à dupla condenação pelo mesmo fato; e) ex post facto law: proibição da retroatividade das leis; f) bill of attainder: vedação a julgamentos sumários.
Com a 6ª emenda, consagrou-se o direito de defesa e de contraditório como corolário do devido processo legal, traduzido na faculdade de inquirir e confrontar testemunhas, na possibilidade de arrolar testemunhas para defesa e no direito a ser assistido por um advogado. Outrossim, incorporou-se o speedy and public trial, que é direito a um julgamento célere e público, bem como o fair notice, que se traduz no direito de ser informado sobre a natureza e sobre a identidade da autoridade em caso de acusação. Por sua vez, a 9ª emenda trouxe as seguintes inovações: a) conhecimento prévio das provas de acusação; b) direito de permanecer em silêncio perante a autoridade policial; c) direito de ser assistido por advogado dativo em caso de notada hipossuficiência. Com a 14ª emenda, efetivou-se a garantia de acesso à jurisdição, como corolário do devido processo legal.
No que tange ao direito constitucional pátrio, o devido processo legal, com seus consectários lógicos de contraditório e ampla defesa, somente passou a constar expressamente com a Constituição da República Federativa de 1988, no artigo 5º, LIV e LV. Há que se ter em mente que a garantia do devido processo legal tem estatuto constitucional de direito fundamental
Originariamente concebidos como instrumentos jurídicos de defesa do indivíduo em face do Estado e, posteriormente, como instrumentos de exercício de direitos sociais e proteção aos direitos coletivos, sempre em relações jurídicas de característica vertical, discute-se, atualmente, sobre a possibilidade de irradiação de efeitos dos direitos fundamentais nas relações jurídicas travadas entre particulares, de característica eminentemente horizontal.
No campo do direito constitucional comparado, duas escolas de direito já teorizaram sobre o tema, sempre tendo como norte a questão de conciliar a autonomia de vontade das partes com a indisponibilidade dos direitos fundamentais:
a) Escola norte-americana – Teoria dos atos de Estado: por esta doutrina os direitos fundamentais irradiam seus efeitos somente nas relações jurídicas privadas heterogêneas, nos quais os sujeitos não se encontram em posição de igualdade. Em tais relações, uma das partes encontra-se em posição de vantagem em face da outra, fato que possibilita a imposição de vontade desta em detrimento daquela, não havendo que se falar em autonomia de vontade das mesmas. Logo, havendo quebra na isonomia, justifica-se a aplicação dos direitos fundamentais, como forma de se nivelar as desigualdades naturais entre os indivíduos, ainda que a relação que os une seja de natureza privada;
b) Escola alemã: no direito alemão, três correntes discorrem sobre o tema:
b.1) Teoria da eficácia imediata: por esta corrente, os direitos fundamentais estendem seus efeitos jurídicos a todas as relações privadas, aplicando-se diretamente a norma constitucional, independentemente de quaisquer outros comandos legais. Assim, o operador do direito encontra-se autorizado a irradiar a eficácia dos direitos fundamentais a toda e qualquer relação jurídica, ainda que não haja comando legislativo infraconstitucional para tanto;
b.2) Teoria da eficácia mediata: por esta teoria, a aplicação dos efeitos dos direitos fundamentais nas relações privadas depende sempre de prévio e expresso ato do poder constituído legislativo em sentido expresso. Destarte, não se encontra o operador do direito autorizado a irradiar, diretamente da própria constituição, os efeitos jurídicos dos direitos fundamentais em toda e qualquer relação jurídica, mas, tão-somente, naquelas em que houver permissão legal para tanto;
b.3) Teoria da proteção dos deveres: por esta última corrente, a irradiação dos efeitos jurídicos dos direitos fundamentais somente dar-se-á nas relações jurídicas privadas que versem sobre um núcleo de proteção inafastável ao Estado. Portanto, havendo o prévio dever de proteção estatal sobre o negócio jurídico travado, justifica-se, por parte do aplicador do direito, a irradiação de eficácia dos direitos fundamentais sobre o mesmo, independentemente de sua origem, seja oriunda do direito público ou do direito privado.
É de se ressaltar que, em que pese o alto grau de complexidade em todas as teorias desenvolvidas sobre o tema, ainda não se chegou a uma fórmula ideal sobre a irradiação de efeitos dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas, não havendo consenso sobre o tema nas grandes academias internacionais de direito. A aplicação de uma das teorias acima deverá ser feita casuisticamente, mediante um exercício ponderado dos interesses em jogo.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela necessidade de observância do devido processo legal, quando o contrato social assim expressamente o determinar, vedando a expulsão sumária de associado em cooperativa de trabalho, conforme ementário a seguir transcrito:
“Cooperativa — exclusão de associado — caráter punitivo — devido processo legal. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembleia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.” (RE 158.215, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07/06/96).
No que se refere ao direito constitucional pátrio, tanto o poder constituído legislativo, quanto o judiciário, bem como a doutrina, ainda não deu ao tema a importância devida, havendo tímidos esforços no sentido de se dar prevalência a teoria da eficácia mediata. A lei de planos de saúde (nº 9.656, de 1998), por exemplo, determina expressamente condicionantes do devido processo legal para a hipótese de rescisão motivada do contrato de assistência privada à saúde com o beneficiário (artigo 11, parágrafo único, e artigo 13, parágrafo único, II).
Como regra, a Lei 9.656, de 1998, em seu artigo 13, parágrafo único, II, estabelece que a suspensão ou rescisão do contrato é uma prerrogativa do consumidor existindo apenas duas hipóteses de rescisão unilateral pela operadora:
a) quando o consumidor frauda o contrato de plano de saúde; e
b) no caso de não pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses da vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência.
Em outras palavras, pode o consumidor rescindir o contrato a qualquer tempo, ao passo que a operadora de planos de saúde somente estaria autorizada a rescindir o contrato na ocorrência de uma das hipóteses previstas do artigo 13, parágrafo único, II.
Ressalte-se que é vedada a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, em qualquer hipótese, durante a ocorrência de internação do titular (artigo 13, parágrafo único, III, da Lei de Planos de Saúde).
Tanto a hipótese de rescisão em razão de fraude praticada pelo consumidor, quanto por força de inadimplemento por parte do consumidor dependem da autorização da Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ser concedida após prévio procedimento administrativo a ser instaurado pela operadora perante a autarquia, sendo expressamente vedada a rescisão unilateral por parte da empresa.
Assim, resta comprovado que a Lei de Planos de Saúde encontra-se na vanguarda do direito constitucional, ao prever hipótese legal de aplicação horizontal de direito fundamental, ao estabelecer um procedimento próprio para rescisão do contrato de plano privado de assistência à saúde, onde se garante ao beneficiário do plano o direito ao contraditório, em caso de inadimplência, facultando-lhe a possibilidade de arcar com seus débitos e adimplir sua dívida.
[1] CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade na Constituição de 1988. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2006.