A estatística mais recente do Center for Disease Control, divulgada em março de 2023, estima que uma em cada 34 crianças nos Estados Unidos apresentam autismo. Já a estatística global utilizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), atualizada em maio de 2022, estima a presença de pelo menos uma pessoa com TEA em cada grupo de cem. No Brasil, não há dados seguros acerca da quantidade de pessoas com autismo, porém se estima — com base nas referências internacionais indicadas — a existência de algo entre dois e seis milhões de pessoas com TEA no país.
De fato, o transtorno do espectro autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades de comunicação e interação social, bem como pela presença de comportamentos e/ou interesses repetitivos ou restritos. Tais sintomas configuram o núcleo do transtorno, podendo a gravidade de sua apresentação variar de indivíduo para indivíduo. Trata-se de um transtorno permanente, para o qual não há cura, sendo o diagnóstico e intervenção precoces com realização de terapias de alta intensidade e longa duração por equipe multiprofissional — envolvendo a atuação de profissionais de psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, dentre outros — a principal forma de assegurar o melhor desenvolvimento e qualidade de vida à pessoa com TEA.
Diante da enorme importância do tema, verifica-se que os direitos da pessoa com TEA são assegurados por diferentes diplomas normativos no Brasil, merecendo destaque a Lei 12.764/2012 (Lei Berenice Piana) a qual instituiu a Política Nacional dos Direitos da Pessoa com TEA, reconhecendo o autismo como uma deficiência para todos os efeitos legais e destacando os direitos ao diagnóstico precoce e atendimento terapêutico multiprofissional. Ainda, desde 2020, com o advento da Lei 13.977 (Lei Romeo Mion) foram instituídas a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea) e a fita quebra-cabeça como símbolo do TEA, tudo isso com o intuito de assegurar às pessoas com TEA atenção integral, pronto atendimento e prioridade no atendimento e no acesso aos serviços públicos e privados.
De outro lado, porém, a realidade vivida pelas pessoas com TEA e por seus núcleos familiares está longe da prevista na ordem jurídica. Falta acesso aos serviços de saúde que assegurem o diagnóstico precoce e o atendimento terapêutico multiprofissional, tanto na rede pública quanto privada. Ademais, os custos adicionais necessários ao atendimento dessas necessidades num contexto de carência de coberturas públicas e privadas sobrecarregam e hipervulnerabilizam economicamente essas pessoas.
Especificamente no que pertine a relação estabelecida entre usuários de planos de saúde com autismo e as respectivas operadoras de planos de saúde a questão se reveste de aspectos dramáticos, especialmente no que diz respeito à negativa e/ou limitação dos tratamentos terapêuticos de que esses pacientes necessitam.
De fato, a atividade das operadoras de planos de saúde encontra seu regramento legal especificado na Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, conhecida como Lei dos Planos de Saúde e, também nas normas regulamentadoras expedidas pelo órgão regulatório responsável pelo setor, notadamente, a Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Ocorre que as operadoras de planos de saúde são pessoas jurídicas que desenvolvem uma atividade econômica que envolve a ligação de uma cadeia de atividades — fornecedores de materiais médicos, equipamentos e medicamentos, prestadores de serviços de saúde, entre outros — e seus usuários finais, que são pessoas físicas que aderem ao contrato referente aos serviços de seguridade e assistência à saúde das operadoras de planos de saúde. Nesse sentido, é facilmente perceptível que a relação estabelecida entre as operadoras de planos de saúde e seus usuários se amolda perfeitamente ao conceito legal de relação jurídica de consumo, pelo que incidente o regramento do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
De fato, o tema foi objeto de significativa controvérsia resultando na edição, em 2018, pelo Superior Tribunal de Justiça do enunciado sumular nº 608, conforme o qual: “aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”.
De outro lado, a recente Lei nº 14.454/2022, de 21 de setembro de 2022 — a qual alterou a Lei dos Planos de Saúde para estabelecer critérios que permitam a cobertura de tratamentos que não estão incluídos no rol de procedimentos da ANS — inseriu uma importante alteração no artigo 1º da Lei nº 9.656/1998 que passou a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 1º — Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:”
Nesse sentir, passou a constar expressamente no artigo 1º da Lei dos Planos de Saúde que as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde se submetem não somente à lei de regência de sua atividade e às regulamentações da ANS, como também, e simultaneamente, às disposições do CDC.
Trata-se de alteração legislativa recente e de enorme significância, tendo em vista que não somente restou materializado no texto legal o consolidado entendimento acerca da aplicabilidade do CDC às relações entre usuários e operadoras de planos de saúde. Para além disso, a alteração legislativa trouxe um novo marco legislativo sobre a aplicação do microssistema consumerista relativamente às entidades de autogestão — pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos que operam planos coletivos voltados a determinados indivíduos vinculados a uma entidade pública ou privada (p.e. Ipergs-Saúde, Plan Assiste MPU) — que operam planos de saúde, visto que estas encontram sua regulação legal na mesma Lei nº 9.656/1998 e, portanto, em relação a elas também se aplicam as disposições do CDC. Supera-se, pois, a restrição consignada no enunciado nº 608 do STJ.
Por outro aspecto, retomando a análise da relação entre os consumidores-usuários de planos de saúde e suas fornecedoras, as entidades privadas de assistência à saúde, cumpre atentar para as peculiaridades dessa relação. De fato, no âmbito desta relação jurídica, destaca-se como especialmente relevante o princípio da proteção da confiança, assim entendido como “a necessária tutela que a ordem jurídica confere a situações conhecidas como expectativas legítimas”. Efetivamente, com muito mais intensidade que em outras modalidades de serviços, ao contratar um plano privado de assistência à saúde, o consumidor tem a expectativa legítima de que encontrará amparo dos serviços da operadora quando deles assim necessitar.
Outrossim, o inciso IV, do artigo 6 º do CDC, estabelece como direito básico do consumidor a proteção contra práticas e cláusulas abusivas no fornecimento de produtos e serviços, de maneira que são abusivas as cláusulas e as práticas que criam obstáculos ao acesso a procedimentos e tratamentos de saúde de modo a comprometer a satisfação útil do contrato.
Ainda, nesse contexto se faz necessária a compreensão das pessoas com transtorno do espectro autista enquanto consumidores hipervulneráveis.
Sabe-se que todo consumidor é vulnerável por sua própria posição jurídica de consumidor. Há, no entanto, circunstâncias concretas verificadas em determinados indivíduos e grupos sociais que os colocam numa condição de especial vulnerabilidade, de uma vulnerabilidade agravada, frente ao fornecedor, e a tal situação a doutrina e jurisprudência dominantes denominam de hipervulnerabilidade.
Quanto às pessoas com TEA — as quais se encontram abarcadas na categoria de pessoas com deficiência — a sua especial vulnerabilidade é reconhecida em inúmeros dispositivos presentes no corpo da Constituição Federal de 1988, na Convenção Internacional sobre a Proteção das Pessoas com Deficiência (com status normativo de norma constitucional), em normas convencionais infraconstitucionais (p. e. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência), e, ainda, em normas legais como a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) e a Lei Berenice Piana.
Vale dizer, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio, o consumidor com transtorno do espectro autista é vulnerável por ser consumidor e, cumulativamente, é vulnerável por ser pessoa com deficiência.
De outra maneira, tal hipervulnerabilidade — decorrente da cumulação da condição de consumidor e pessoa com TEA — não exclui a sobreposição de outras ordens de vulnerabilidade. Em outras palavras, é perfeitamente possível, e até frequente, a cumulação de múltiplas vulnerabilidades em um mesmo indivíduo ou grupo social, por exemplo: uma criança com TEA beneficiária de plano de assistência privada à saúde será vulnerável não somente enquanto consumidora e pessoa com TEA, mas também enquanto criança.
Aliás, na esteira do que já se disse acerca da hipervulnerabilidade, é de reconhecer a necessidade de proteção jurídica ainda mais intensa e ampla aos consumidores com TEA que se encontram nessa posição de hipervulnerabilidade agudizada ou múltiplas vulnerabilidades. Isso porque, considerando as peculiaridades já analisadas acerca do transtorno do espectro autista — um transtorno do neurodesenvolvimento para o qual preconizado o diagnóstico precoce, ainda na primeira infância, e a aplicação de tratamento multiprofissional, intensivo e de longa duração — é de reconhecer que os consumidores com TEA mais frequentemente afetados pelas práticas abusivas das operadoras de planos de saúde são justamente as crianças com autismo e, portanto, um segmento de consumidores sob múltiplas vulnerabilidades.